A energia da biomassa é a solução?
A ameaça de drástica alteração climática prevista para as próximas décadas e seus efeitos devastadores sobre a vida na Terra - por força do efeito-estufa - têm suscitado, contraditoriamente, justificável euforia. O desenvolvimento de fontes de energia alternativas, particularmente em zonas equatoriais e tropicais do planeta, como é o caso de ¾ da área do Brasil e grande parte da África, Ásia e Oceania, assim o vem demonstrando.
Houve notável desenvolvimento na tecnologia de geração da energia, a partir da radiação solar, dos ventos, das marés e outras fontes que, no entanto, ainda não se apresentam como solução global para a crise que se desenha. Por outro lado também, boa parte da sociedade resiste à idéia de ampliação na oferta de energia gerada a partir de novas centrais termonucleares, por conta de todo o risco envolvido nesse processo.
Fica evidente, portanto, que o grosso da energia que movimentará nosso mundo no futuro próximo será produzido a partir da biomassa, particularmente da cana-de-açúcar e dos grãos das oleaginosas.
Inicialmente, analisemos a substituição da gasolina pelo álcool (etanol), usada para acionar motores de veículos menores. O consumo anual de gasolina no Brasil é de 35 bilhões de litros. Como os motores a álcool têm, em média, um consumo volumétrico 25% superior ao dos motores a gasolina, seria necessária a produção anual de 44 bilhões de litros de álcool. De acordo com dados da Única - União da Agroindústria Canavieira de São Paulo, o rendimento médio da produção de álcool é de 7.900 litros/hectare.ano. Logo, para atender a toda a demanda nacional, seria necessária uma área plantada com cana-de-açúcar de 56.000 km2, o que equivale à área do Estado da Paraíba ou 0,6% do território nacional. Se a pretensão for a de exportar etanol, os números crescem proporcionalmente.
Este dado não chega a assustar ninguém, haja vista a área envolvida para atender à demanda interna. Contudo, cabe relembrar um pouco da nossa história. No século 17, a cultura da cana-de-açúcar foi introduzida no nordeste brasileiro, pela exploração do trabalho escravo e com a produção voltada integralmente para a exportação. Este modelo, já àquela época propiciou o surgimento dos “senhores de engenho”, figuras emblemáticas de exploração do trabalho e da concentração de renda. Tal episódio foi inquestionavelmente um dos principais fatores - ao lado da seca - que condenaram o nosso nordeste ao dramático quadro de injustiça social que perdura até hoje. Outro episódio lamentável da cultura da cana-de-açúcar deu-se já no século passado, em plena ditadura. Daquela feita, com a plantação de canaviais para produção de álcool combustível, no âmbito do conhecido Pró-Álcool, formou-se um quadro cruel, com o surgimento da figura do “usineiro” explorando o trabalho do “bóia-fria” e, a exemplo do “senhor de engenho”, concentrando renda e promovendo miséria particularmente na Região Sudeste.
Por outro lado, a produção de óleos combustíveis vegetais, para adição ao óleo diesel, visa atender à demanda de motores maiores e das indústrias. O atual consumo de óleo diesel no Brasil é de 46 bilhões de litros/ano. Como se pretende adicionar até 50% de óleos vegetais ao óleo diesel, serão requeridos 23 bilhões de litros anuais de óleos vegetais para suprir tal demanda.
Segundo dados da Embrapa, a título de exemplo, o rendimento médio de óleo de soja é de 560 litros por hectare de soja plantada. A partir destes dados podemos estimar que a área plantada com soja ou outras oleaginosas alcançará algo em torno de 420 mil km2, equivalentes à soma das áreas dos Estados do Paraná e São Paulo ou 5% da superfície do país. Isto se afigura como dado preocupante, na medida em que serão áreas contínuas muito extensas, cobertas por uma monocultura, o que é contra-indicado em termos ambientais. Vale dizer novamente que em caso de exportação, os números cresceriam linearmente com a demanda.
Estas são algumas das questões a serem enfrentadas na transição dos combustíveis derivados do petróleo para a era da biomassa e das fontes de energia renováveis. Evidentemente, esta transição demandará planejamento sério e competente - prática não muito comum na nossa história - a fim de que se evitem os erros do passado, ou que se impeçam novos erros intransponíveis e incapazes de viabilizar o novo modelo.
A partir de tais considerações, ressurgem antigas indagações: no caso do álcool, como evitar o surgimento de uma nova casta de “senhores de engenho”, “usineiros” e “latifundiários”, responsáveis seculares por práticas semi-feudais de produção, injustiça, violência e miséria no campo? Por que não aproveitar o ensejo para fazer uma reforma agrária “de verdade”, com equânime distribuição de terra? O impacto ambiental nas extensas áreas de monocultura de cana-de-açúcar já foi avaliado em termos de riscos à fauna e à flora? Por que não limitar a extensão de áreas contínuas nessa e outras monoculturas? Já foram analisadas as restrições de outros países ao álcool produzido em condições ambientais e humanas condenáveis?
No caso das oleaginosas, as mesmas questões se postam e a elas se agregam o caso das sementes transgênicas e seus efeitos ainda desconhecidos sobre a vida e o meio ambiente, a extensão de área plantada requerida para atender à demanda interna e à exportação, em detrimento da plantação de alimentos e, sobretudo, a ampliação da área plantada à custa da destruição de ecossistemas essenciais, particularmente do desmatamento da nossa Amazônia, como se dá aberta e impunemente hoje. É claro que a biomassa se apresenta como uma solução viável para uma boa parcela os danos que a civilização do petróleo produziu. Entretanto, não é uma panacéia e, antes que se inicie sua implantação em escala mais ampla, essas e outras questões merecem ser analisadas e resolvidas. Já é hora de os interesses sociais de toda a gente prevalecerem sobre os monumentais e mesquinhos ganhos das elites.
Argemiro Pertence
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